terça-feira, 17 de março de 2015

O jeito “Lunga” de ser: Qual o limite entre grosseria e autenticidade?



Seu Lunga, famoso por suas respostas ríspidas, faleceu no dia 22/11/14. (Foto: Gustavo Pimentel/Flickr Creative Commons)
Seu Lunga, famoso pelas respostas curtas e diretas, faleceu recentemente (Foto: Gustavo Pimentel/Flickr Creative Commons).
A pouco tempo, aqui no Ceará, lamentou-se o falecimento de Seu Lunga. Trata-se de um senhor que ficou conhecido por seu mau-humor. A respeito dele, dezenas de histórias se propagaram, muito engraçadas. Eu as ouvi desde criança e sempre ri muito delas. Para quem não conhece nenhuma, são mais ou menos assim:
“Conta-se que Seu Lunga foi à farmácia comprar veneno para rato. Questionado se levaria a droga, ele respondeu: “Não, eu vou trazer os ratos aqui, para tomar.’”
É engraçado, sim. Ele foi mestre nas respostas que expunham a tolice do indagador e que, vez por outra, todo mundo gostaria de dar. Eu mesma, quando uma vendedora me pergunta se estou procurando algo especial, tenho vontade de responder: “Não, procuro alguma coisa bem vulgar, comum mesmo.” E quando pergunta se procuro algo específico, minha vontade é dizer: “Um botão. Perdi o meu, você o viu por aqui?” Entretanto, felizmente, aprendi a filtrar algumas respostas. Porque na prática, agir assim, pode magoar sem necessidade. A maioria das pessoas, ao receber uma resposta ao estilo Seu Lunga, não acha a menor graça. E elas têm razão. Porque ninguém gosta de receber grosseria.
Grosseria e autenticidade não são a mesma coisa. Verdade que expressar-se autenticamente através da grosseria é bem mais fácil. Dizer ao mal vestido que ele está feio, ao suarento que seu abraço dá nojo, à mulher com sobrepeso que a acha gorda, pode ser bem prático. Mas fere as pessoas e revela-se nocivo aos relacionamentos saudáveis. O que fazer, então? Mentir? Não necessariamente. Mas colocar-se no lugar do outro é uma dica velha, que jamais saiu da moda. Ela nos ajuda a encontrar a medida certa para assumir as próprias crenças, sem desrespeitar o próximo.
Outro dia vi numa rede social a foto de um menino cujo pai raspou-lhe a cabeça, na parte superior, imitando a calvície dos mais velhos. Abaixo do retrato, quem o postou achava engraçado o fato. Segundo a publicação (espero que tenha sido uma montagem), o pai tinha feito isso porque o garoto (não devia ter mais que dez anos) lamentou não ser um homem maduro. No rosto da criança, era possível ver a marca de uma lágrima. E nessa lágrima, quase dava para ver a tristeza, a humilhação e a impotência daquele filho, ocasionada pelo próprio pai – um homem maduro (e covarde). Bem, esse adulto talvez tenha passado por algum tipo de humilhação semelhante na própria infância. E certamente esqueceu o que é estar no lugar da criança abusada. Agora usa o discurso: “Minha mãe me educou assim e deu certo.” É, deu certo mesmo: ele aprendeu a humilhar para mostrar sua força. E ainda acha isso bonito, a ponto de fotografar! Ele não sabe, mas o que educa uma criança não é o abuso da sua fragilidade e dependência. Educação se dá pelo exemplo. E seu exemplo, nesse caso, foi péssimo.
Quem acha normal fazer isso com um menino? Quem se acostumou com o desrespeito. Alguém que acha normal as pessoas maltratarem umas às outras e que, provavelmente, não encontra limites para a grosseria. Pessoas assim, não sabem refrear os impulsos e fazem “o que dá na telha”. O mundo está cheio delas. Pessoas carentes de educação. E não somente educação formal, mas princípios morais.
Ser bem educado não é ser falso ou mentiroso. É ser honesto e verdadeiro, sim, mas sem perder o respeito pela integridade alheia. Requer esforço na escolha das palavras certas e do momento propício. Pode ser até mais trabalhoso, mas a longo prazo, é a maneira mais prática de conviver bem com o próximo. Infelizmente, respeitar o outro parece não ser algo muito valorizado por alguns. E muita gente se acostumou a aplaudir o desrespeito, a pretexto de irreverência. A grosseria torna um homem famoso, enquanto a gentileza faz com que pareça “abestado”. É uma inversão de valores que pode se tornar perigosa.
Ninguém está no mundo para ser desrespeitado. Portanto, antes de agir inspirado no personagem das anedotas nordestinas, esteja cada um ciente do que está fazendo e suas possíveis consequências. A pessoa a quem se responde está preparada para a brincadeira? Será que a resposta irá ferir a suscetibilidade dela? No caso dos que abordavam o Seu Lunga, provavelmente não se magoavam, porque compreendiam (e até esperavam) o seu trato rústico, remanescente dos velhos tempos. Mas no caso do pai mencionado, penso que ele feriu profundamente o seu garoto. Não o corpo, que apesar da cabeça raspada, ficou intacto. Mas a alma. Ah! A alma! E esta, é muito mais difícil curar! Não duvido que no futuro esse garoto se torne aquele tipo de filho que, ante o pai velho e fragilizado, não titubeie para lhe atirar no rosto uma dolorosa grosseria. Afinal, como se diz: “Aqui se planta, aqui se colhe”.

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